O seu trabalho não precisa de um propósito corporativo digno de um Prêmio Nobel para existir e ser realizado acima de todas as expectativas. O bom e velho trabalho, aquela antiga venda de mão-de-obra marota, sem compromisso emocional, só financeiro, pode ser feito com primazia pelo período contratado para que, aí sim, fora do ambiente corporativo, por mais descolado ou revolucionário que este diga ser, você faça o que de fato te inspira ou dê sentido ao seu viver.
O trabalho em si é um meio, não um fim.
E não há problema nenhum nisto. Afinal, sem juízo de valor algum, é o trabalho que permite com que paguenos nossas contas e tenhamos acesso a uma gama de serviços e produtos atrelados a vida moderna. Porém, parece haver um demérito, uma comoção generalizada ao se pensar o trabalho desta forma, sem o tal do propósito. A dissociação é quase uma heresia.
Na prática, o própósito é um subterfúgio, recurso, ferramenta, discurso, hack que usamos, e as empresas também, para manter a produtividade constante na correria de cada dia com um sorriso nos lábios, como cantava o Gonzaguinha. Sem dúvida é uma prática válida e capaz de trazer benefícios produtivos a empresa através de um maior engajamento e blá, blá, blá. A descoberta desta pólvora nem se discute. A questão é: o trabalho também pode ser apenas uma ponte para que as pessoas vivam e realizem seus verdadeiros propósitos pessoais fora dele.
Ser apenas isto: trabalho.
E tá tudo bem.
Ao menos era pra estar.
TUDO COMEÇA AQUI
Alguns pontos de partida são importantes: 1) Segundo o Dicionário Aurélio, propósito é a tomada de decisão, aquilo que se pretende alcançar ou realizar, finalidade, fim, mira. Mas o sentido tratado aqui refere-se àquela mão cheia de tinta na narrativa interna da empresa para evidenciar o trabalho como algo maior e especial, muito além de um mero objetivo lucrativo. 2) O recorte é comercial e não instituições que existem em prol do bem ao próximo. 3) A ideia não é desmerecer o propósito, mas normalizar o trabalho sem ele. Sigamos então.
Nós, seres humanos, adoramos nos sentir especiais de alguma maneira. Sermos reconhecidos, ouvidos, valorizados, admirados por algo que fazemos ou por nossas ideias. Este mesmo sentimento se expande para o ecossistema corporativo. Estarmos atrelados a empresas “especiais”, admiradas e vistas igualmente como únicas, seja por suas conquistas, tradição, produtos, segmento, marca ou gestão, também fortalece este desejo. E quanto mais singular ela for, maior o seu peso na consolidação desta sensação pessoal em ser, de pertencer a um grupo seleto e diferenciado.
E não dá para ter essa “uniqueness” de lugar mágico para se trabalhar, vender a imagem da empresa (e continuar vendendo) como um lugar especial que faz a diferença no mundo e que você sempre sonhou em fazer parte desde tenra idade (sempre quis trabalhar numa empresa de lubrificantes automotivos!!!) sem dar uma floreada, produzir e manter uma comunicação, um marketing e um discurso interno e externo afiados para este fim. E o propósito no trabalho é o componente motriz de todo o desenrolar de toda esta explanação, por mais distante que ele possa estar da realidade interna vivida por cada um.
“Junte-se a nós e vamos tornar acessível o acesso a alimentação natural em todo o mundo”!
Este pode ser o propósito de um vendedor de suco de laranja a R$1,00 vendido em Madureira (bairro do subúrbio do Rio de Janeiro) como também de uma fabricante/distribuidora de bebidas que está construindo um mundo melhor com sucos naturais industrializados, repletos de conservantes e negociados de forma draconiana com os pequenos produtores locais de países da américa do sul e exportando em dólares, por exemplo.
Lembrando do Postulado MONKEY S/A #3: O QUE PARECE, É.
O PODER DAS HISTÓRIAS
Existem trabalhos em que nossa criatividade, capacidade de inovar, imaginar, lidar com situações novas, diferentes e sexys acontecem a cada momento e tudo isso num ambiente propício e estimulante. Mas sabemos, também, que boa parte da rotina dos empregos não é exatamente a sétima maravilha laboral, por motivos diversos tais quais como os tipos de segmentos corporativos, os níveis de acesso a benefícios de acordo com os cargos e funções, ou a escolaridade dos trabalhadores, por exemplo. Boa parte dos empregos pode ser repetitiva, previsível, facilmente entediante e sem grandes expectativas a não ser o fim do expediente. E para muita gente isso pode ser angustiante.
O que nos leva ao segundo ponto: o poder das histórias.
Adoramos histórias. Somos feitos de histórias. Somos seres simbólicos.
As palavras moldam a percepção da realidade a nossa volta. E, dependendo do seu uso, nossa própria noção do real (até porque tudo que temos é um vislumbre através dos nossos sentidos) é configurada. Com o propósito não é diferente. Propósito no trabalho tem relação com o que faz sentido para você ao entrar pela porta da empresa.
Todos os dias.
E o discurso do propósito corporativo e a linguagem para disseminá-lo permitem transformar algo insonso em algo mais palatável. Um trabalho chato na coisa mais excitante do mundo, ao menos em teoria e nas placas dispostas no corredor da empresa. As palavras (e todo o aparato para massificá-las) criam uma nova percepção e dão um motivo glamouroso à realidade trabalhada doze horas por dia.
Diz aí, o que é mais cool?
“Aqui produzimos armas de fogo letais e de destruição em massa”
OU
“Trabalhamos aqui para tornar o mundo mais pacífico e seguro”
O mundo corporativo é cheio deses termos sempre bem amaciados na retórica para amenizar ou dar sentidos muito específicos aos seus próprios interesses. Um exemplo: o tal do salário emocional. Seja lá o que isso significa.
O propósito é utilizado para dar um novo ou determinado ângulo sobre o que é realizado pela empresa. Este, sempre de caráter especial, inspirador e com a capacidade de gerar ânimo, engajamento, senso de comunidade e relevância.
É um mecanismo de produtividade.
A FORÇA DA MÁQUINA
Remar contra a maré é complicado em qualquer período ou grupo social. Muito da caminhada adiante da humanidade veio de pessoas com ideias ou pontos de vista que abriram caminho com facão através do status quo. Com o meio corporativo não seria diferente.
É no ambiente empresarial que encontramos as mais efusivas exaltações à criatividade, a inovação, o autodidatismo, a iniciativa, o fazer acontecer, a confluência de ideias.
O pensar fora da caixa…
… desde que não entre em conflito de interesses com certas regras veladas e posturas esperadas de cada trabalhador presente neste ecossistema. E verdade seja dita: é assim em qualquer agrupamento humano, independente da escala ou natureza.
Pipocou em anos recentes o termo Quiet Quitting. Uma expressão nova para um hábito que existe desde que o mundo é mundo. Dá um clicada neste link aqui para você entender do que se trata. Abaixo, uma das primeiras manifestações públicas a respeito, conforme o trecho abaixo de um artigo do Insper:
Um dos primeiros vídeos sobre o assunto foi postado na rede social TikTok em meados de julho por Zaid Khan, um engenheiro de 24 anos de Nova York. Embora não tenha cunhado o termo, ele definiu quiet quitting desta forma: “Você não está desistindo do seu emprego, mas está abandonando a ideia de ir além no trabalho”, explicou. “Você ainda está cumprindo seus deveres, mas não está mais seguindo a mentalidade da cultura de agitação de que o trabalho deve ser sua vida. A realidade é que não é, e seu valor como pessoa não é definido pelo seu trabalho.”
Quem nunca na carreira? Ah, claro, esqueci que o homo office é um ser iluminado de produtividade em qualquer contexto. Não vamos entrar na discussão dos impactos e consequências para todos os envolvidos nesta prática, mas, no cerne do Quiet Quitting esta, também, o antagonismo ao furor do propósito corporativo enxertado nos trabalhadores.
“…passamos mais tempo no trabalho do que em casa, então, façamos valer a pena, tenhamos um propósito nesta jornada…“
A grande sacada é que isto, e outros postulados corporativos amplamente disseminados mas, no mínimo, dúbios, não é marretado de forma tão impactante ou agressiva, mas sempre de um jeito leve, comedido, com aquele viés de autoridade repleto de uma aura de sapiência quase espiritual.
Entenda: esse quadro não é pintado acidentalmente. Isso é repetido quase que em looping infinito por revistas, RHs, entrevistas, gestores, coachs (estes então…) e cia. Um artigo intitulado Quem não trabuca não manduca: o discurso do trabalho na publicidade empresarial, veiculado na revista Crátila, de 2018, dos autores Schneider Pereira Caixeta e Grenissa Bonvino Stafuzza, ambos da Universidade Federal de Goiás (UFG) ajuda a ilustrar a ideia acima. Segue um recorte das consideração finais do estudo:
“A estratégia de retratar o trabalhador na publicidade não é algo novo. Há muito tempo, as campanhas publicitárias vêm se empenhando em divulgar uma imagem de trabalhador feliz e satisfeito que, todavia e infelizmente, não corresponde à imagem real conhecida por muitos. Embora as ações promocionais insistam em empurrar para os consumidores uma imagem desejada de trabalhador perfeito, números existem para contrariar, expondo a vergonha dos baixos salários, das longas jornadas de trabalho e das péssimas condições de trabalho. Podemos perceber que a maneira como o mundo do trabalho está organizado atualmente, embora ofereça ao trabalhador mais oportunidades e, de alguma maneira, melhores condições de trabalho, apenas reflete as mudanças ocorridas na sociedade. Assim como esta deixa a desejar em vários setores, também o mercado de trabalho tem escancaradas suas imperfeições. É aquela sensação de que uma mão dá, mas a outra tira”
… “E não é de se surpreender que essas contradições sejam encontradas na publicidade empresarial. Antes de tudo, precisamos entender que a publicidade trabalha a favor das empresas, pois, afinal, empresas anunciam, trabalhadores não. E empresas anunciam seus produtos, e são os produtos o foco principal de seus anúncios, mesmo quando a aparente intenção é venerar o trabalhador, como tivemos oportunidade de confirmar. As empresas se interessam pelo produto, os consumidores pelo produto, e pelo trabalhador apenas ele mesmo“.
“O sistema é foda”. Capitão Nascimento, Tropa de Elite.
A ideia quase sacra do propósito no trabalho, assim como acontece com outros postulados empresariais onipresentes e de veracidade questionável, acabam gerando muita dificuldade em percebê-los uma vez que “naturalmente” já estão enraizados no cotidiano das empresas. Expressar uma opinião diferente ou mesmo confrontadora seria o pior dos sacrilégios que um colaborador mortal poderia fazer. Algumas vezes isto até acontece. Alguns perfis no Linkedin de produtores de conteúdo, vez ou outra, criticam algum aspecto do ambiente corporativo e recebem mensagens de apoio ao baterem em alguma tecla delicada ou contrária aos bons modos funcionais.
Mensagens particulares, claro.
FECHA A CONTA
Próposito no trabalho é uma destas expressões que deixam o “coração quentinho” de quem fala e de quem ouve. Trabalhar por “algo maior”, segundo as definições da empresa para esse algo maior, não as suas próprias, lhe tornará sempre um profissional mais bem visto e alinhando com as diretrizes institucionais, e com o próprio meio, do que qualquer outro que labute apenas pelo argh, sujo, mundano e baixo: dinheiro.
E aqui não posso esquecer de frisar um componente muito importante que entra nesta equação: a cultura da empresa. Dependendo do tipo de cultura adotada e da adesão dos funcionários a ela, a ligação com o propósito no trabalho, pode ser mais ou menos relevante. Existem toneladas e toneladas de livros e artigos sobre o assunto “Cultura Corporativa“, explicando de cabo a rabo todos os conceitos e nuances sobre o tema. Abaixo, incluo uma definição que achei no site da Endeavor, com um cunho mais informal:
“Daniel Castello, mentor Endeavor e especialista em Gestão de Pessoas, diz que: A Cultura é composta, essencialmente, do que comunicamos, em todas as suas formas, e o significado que as pessoas derivam disto. Desde a escolha do local físico, do mobiliário, da forma como o espaço está dividido, do nome, da grafia, das cores, do jeito como falamos, das palavras que escolhemos ao tom de voz que usamos em cada situação… Tudo que fazemos, falamos e escolhemos comunica a forma como vemos o mundo, como nos posicionamos dentro dele e com que tipo de pessoas queremos nos relacionar. E como esperamos que as pessoas respondam a isto. Desenvolver conscientemente a Cultura de uma empresa não é fácil. Tem a ver com a consistência como geramos e atendemos às expectativas criadas. Com os exemplos que criamos. Com as decisões que tomamos. Com as histórias que contamos. E, principalmente, com as pessoas que contratamos e as que mandamos embora.”
Chuto que a cultura organizacional é a espiral capaz de fazer esta ideia de propósito no trabalho deslanchar ou não, de acordo com as práticas de reforço desta mensagem e a realidade interna. A cultura da empresa pode até definir que essa coisa de “propósito maior” é só papo furado e o que vale mesmo, veja só você, é só o bom e velho “crescer e ganhar dinheiro“.
Quer ver? No ano 2000, a revista Exame (Edição 729 – Ano 34 – N. 25 – 13/Dezembro/2000) trazia o seguinte título em sua capa: “Hipercompetição no trabalho: funciona?“. A matéria abordava a cultura agressiva de bonificação em dinheiro da Ambev aos funcionários que participavam do programa e que priorizavam bater as metas internas (e ganhar muito dinheiro), competindo com seus pares e relegando a um segundo plano até outros aspectos de sua vida pessoal, como família ou amigos. E nessa pegada que muita gente consideraria insana, a Ambev vinha crescendo horrores, conforme apontado na matéria.
“A hipercompetição entre os funcionários tem a ver com isso? Muito provavelmente, sim. O mesmo método funciona com outra empresa? Em um bom número delas poderia significar o sucicídio. A Ambev só vem tendo resultados positivos ao levar seus funcionários ao limite porque isso combina com sua cultura corporativa, com a forma de remuneração, com a forma de remuneração adotada e com o perfil das mulheres e homens caçados por Magim Rodrigues e seus sócios. A pressão por resultados é enorme. Os horários de trabalho, insanos. Os benefícios oferecidos, pífios. Mesmo assim, a rotatividade entre os executivos é de 5% ao ano. Eles ficam porque apreciam desafios e porque adotam o dinheiro que a vitória sobre eles geralmente traz.” “…O bônus simples pode chegar a 7 salários. O duplo já atingiu 14. Quase tudo é convertido em ações da companhia. “Queira ou não, este é um mundo capitalista”. diz Magim. “A grande motivação de uma pessoa no trabalho é ganhar dinheiro“.
Irônico, né non?
Se a situação mudou ou não, não faz diferença. O fato é que temos uma amostra bem clara de muiiiiito de gente trabalhando e engajada numa das maiores empresas do mundo sem a necessidade de um propósito concorrendo ao prêmio mundial da paz, e toda essa dedicação (considerada por muita gente do meio, nociva e além dos limites…) só pelas doletas, o faz me rir, o dimdim envolvido.
E aqui voltamos ao ponto de partida. Sua empresa pode ter um propósito lindo, funcional e que toca fundo lá na alma dos funcionários para gerar mais produtividade. Isso é ótimo e mérito seu e de toda a equipe que trabalhou para isto. Faz parte eé um componente importantíssimo para qualquer empresa se manter competitiva, é um soft power interno que influencia o engajamento dos funcionários. Ponto pacífico. Mas que fique claro: o trabalho pode ser realizado de forma profissional sem necessidades de floreios linguísticos e resumido apenas ao que de fato é:
um trabalho.